sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

O Elogio da Conscientização

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Frei Betto
Escritor, autor, em parceria com Paulo Freire e Ricardo Kotscho, de Essa escola chamada vida (Ática), entre outros livros

Conscientização deriva de consciência, ter ciência ou conhecimento de algo. O termo introduziu-se na linguagem dos setores progressistas da América Latina pelas obras do professor Paulo Freire (1921-1997), educador brasileiro que desenvolveu a pedagogia do oprimido — método de alfabetização que favorece o aprendizado da leitura e da escrita por meio da contextualização das palavras geradoras. Assim, pai está na raiz de país, pátria, abrindo à consciência do alfabetizando a percepção da conjuntura sociopolítica e econômica em que se situa.

Uma obra imprescindível, radiografia completa da vida e da pedagogia de Paulo, chega agora às livrarias: Paulo Freire – uma história de vida (São Paulo, Villa das Letras, 2006), assinada por Ana Maria Araújo Freire, educadora e viúva do renomado professor pernambucano. Com farta documentação, o livro esmiuça a trajetória de vida do biografado, a evolução e aplicação de seu método, os anos de exílio, bem como os efeitos de seu trabalho em vários países e as homenagens merecidas.

Impelido pelo método Paulo Freire, na década de 1970 intensificou-se, na América Latina, o trabalho de base com setores populares, assessorados por equipes de educação popular empenhadas em conscientizar camponeses, operários e pessoas de baixo poder aquisitivo. O verbo implicava tornar o educando consciente politicamente, ou seja, crítico ao sistema capitalista, às ditaduras, à opressão social e, ao mesmo tempo, adepto do projeto de construção de uma sociedade socialista.

Aos poucos, percebeu-se que não basta conscientizar, dotar o militante de noções políticas de matiz crítico. A cabeça pensa onde os pés pisam. Ainda que se adquira consciência dos problemas sociais e desafios políticos, o risco de idealismo é superado na medida em que o militante mantém vínculos orgânicos com os movimentos sociais. Sem prática social não há teoria que transforme a realidade, ensinou Paulo Freire.

Nas últimas décadas, o trabalho de base ampliou o significado de conscientização. O conhecimento não deriva apenas da razão ou dos conceitos que trazemos na cabeça. Resulta também de fatores não racionais ou transracionais, como a emoção, a intuição, o senso estético etc. Na Bíblia, conhecer é experimentar. Quando se diz que “Sara conheceu Abraão”, significa mais do que ser apresentado a uma outra pessoa. É fazer a experiência daquela pessoa, tocá-la física e subjetivamente, amá-la.

Com a introdução, no trabalho político, das relações de gênero e da preservação do meio ambiente, conscientizar ganhou significado mais amplo, articulando consciência e subjetividade, atuação efetiva e relações afetivas, prática social e solidariedade individual. Descarta-se, assim, a figura do militante maniqueísta, que advoga a transformação da sociedade sem se empenhar na mudança de si mesmo. Agora, conscientizado é o militante que conjuga, em sua atividade social e política, princípios éticos e compromisso com a causa libertadora dos pobres.

A cabeça do oprimido, reza um princípio marxista resgatado por Paulo Freire, tende a ser hotel de opressor. Ela hospeda idéias e atitudes inoculadas em nós por intermédio dos meios de comunicação, da cultura vigente, dos modismos. Pois o modo de pensar e agir de uma sociedade tende a refletir o modo de pensar e agir da classe que domina essa sociedade.

Conscientizar é propiciar aos oprimidos e aos militantes políticos um distanciamento crítico dessa ideologia dominante, de modo que assumam práticas inovadoras e renovadoras, rejeitando, na medida do possível, influências que possam induzi-los a — em nome de uma nova sociedade — adotar práticas típicas dos opressores, como é o caso do guerrilheiro que tortura o soldado inimigo para obter informações. Uma das causas da queda do socialismo no Leste Europeu foi o descrédito de dirigentes políticos que reproduziam em seu comportamento o que era próprio de tiranos e caudilhos que haviam derrubado e tanto criticavam.

Na América Latina, o avanço dos movimentos sociais e da mobilização por mudanças estruturantes depende, hoje, da intensificação do trabalho de base. Esse muitas vezes vê-se ameaçado pela síndrome do “eleitoreirismo” que contamina partidos de esquerda, mais interessados em se manter no poder do que em promover as transformações sociais, políticas e econômicas acentuadas em seus programas e reivindicadas por sua base social de apoio.

Dois critérios devem nortear, agora, essa conscientização: o vínculo pessoal e orgânico com as diferentes formas em que os pobres se mantêm organizados e o aperfeiçoamento da democracia pelo compromisso irredutível com a promoção da vida em toda a sua amplitude, desde a defesa do meio ambiente à luta por reformas estruturantes — como a agrária —, que reduzam a desigualdade social e assegurem a todos uma existência digna e feliz.

Fonte: Correio Braziliense, 09 de fevereiro de 2007

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