segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

Mudando o rumo: consumir significa destruir

--------------------------------------------------------------------------------
Joana Bicalho

Mestre e doutoranda em marketing e comunicação para a sustentabilidade, professora do UniCEUB e da UnB, multiplicadora do Instituto Ethos de Responsabilidade Social Empresarial joanabicalho@uol.com.br

Não há muitos anos, o discurso ecológico era criticado por grande parcela da população em decorrência da postura romântica naturalista, que propunha, praticamente, não tocar a natureza. Com a ampliação do conhecimento acerca das questões ambientais, um modo mais realista de ver o meio ambiente entrou em pauta. Os trabalhos em ecodesenvolvimento, na década de 60, e a criação do termo desenvolvimento sustentável como meta individual e global, na década de 90, fizeram surgir nas discussões políticas, empresariais e sociais a importância do equilíbrio entre desenvolvimento e conservação do meio ambiente, a fim de atender às presentes e futuras gerações.

Lentamente, percebe-se chegar nova visão mundial acerca do valor dos recursos naturais. A compreensão de que o ecossistema é patrimônio comum da humanidade exige a formação de novos hábitos e atitudes de respeito ao meio ambiente. O homem, hoje, é considerado parte da natureza, não mais o seu dono; assim, conservá-la, representa garantir a própria sobrevivência.

A proposta atual é trabalhar em nova educação e postura de vida, levando em conta o consumo responsável. Desse modo, a expressão consumo consciente passa a fazer parte de livros, artigos e matérias e alerta para o aspecto de que consumir significa destruir. Luta-se pela já famosa equação dos 3R: reduzir, reutilizar e reciclar. A ordem é usar, ou comprar, pensando nas próximas gerações.

Até poucos dias atrás, pensava-se que as futuras gerações, às quais cientistas e jornalistas se referiam, diziam respeito a muitas décadas ou centenários à frente. Mas a grande surpresa é, após o maior encontro de cientistas ocorrido em Paris, França, no último 2 de fevereiro, concluir que já estamos vivendo o início do temido apocalipse, com dados aterrorizantes: em 2040, a temperatura média da terra passará de 15 graus, o que provocará derretimento de geleiras e elevação do nível dos mares, deixando o equivalente a toda a população do Brasil desabrigada.

Se, hoje, não conseguimos perceber bem a diferença entre as estações climáticas, a estimativa é que trombas-d’agua, calores intensos, furacões, ciclones e inundações estejam, a cada dia, mais presentes. A falta de água e a perda de cultivos pela seca ou pelas inundações levarão mais de 1 bilhão de pessoas a passar fome nos próximos 50 anos. A qualidade de vida de adultos e crianças será rigorosamente reduzida em razão de doenças, excesso de calor e frio, crimes, fome e dificuldade de acesso a recursos básicos.

A reversão desse quadro exige urgente responsabilidade individual e força-tarefa em grupo para diminuir a emissão de gás carbônico na atmosfera: é preciso reduzir o uso de veículos automotores e ampliar a consciência quanto ao uso de produtos industrializados.

Gestores e funcionários de empresas e órgãos públicos buscam compreender a origem dos produtos que consomem, utilizando suas canetas para licitar e comprar materiais de menor impacto ambiental, reduzir o consumo, exigir de seus fornecedores posturas ambientalmente corretas e valorizar empresas com práticas de produção que respeitem a sociedade e o meio ambiente, privilegiando, assim, processos, procedimentos e logística não poluentes. Da mesma forma, estimulam funcionários a reduzir o consumo e reutilizar materiais, e destinam sobras e descartes a ONGs e cooperativas, movimentando um mercado secundário virtuoso e gerando empregos.

Consumidores passam a ler mais atentamente os rótulos ao mesmo tempo em que percebem seu poder de compra. Julgam a qualidade das empresas pelo tratamento dispensado aos funcionários, pela conduta ética nos negócios e pelos cuidados com o meio ambiente. Sentem-se mais motivados quando, ao fazer uma compra, encontram, nos produtos que procuram, informações sobre a fabricação de maneira ambientalmente correta. Prestigiam ou punem empresas de acordo com o desempenho no âmbito da responsabilidade social. Questionam se há utilidade, antes de consumir os produtos, e levam em conta a durabilidade e a qualidade do item adquirido. Destinam os objetos indesejados ou sem uso a terceiros, diminuindo, assim, a necessidade de consumo e produção.

Políticas públicas e programas voltados para a sustentabilidade devem ser ampliados, o que inclui respeito ao meio ambiente, estímulo à inclusão social por meio de fornecedores, atuação eco-eficiente e, sobretudo, fiscalização e controle na aplicação da legislação ambiental brasileira, considerada uma das melhores do mundo.

Está na hora de perceber o custo ambiental na produção e no consumo de produtos e serviços, boicotando os que não atendem aos desejos e às necessidades das presentes e futuras gerações. Só assim incentivaremos empreendedores, governo e empresas ao mercado sustentável. Afinal, as escolhas de hoje estão diretamente relacionadas à qualidade de vida do amanhã — que já chegou.

Fonte: Correio Braziliense de 12/02/07

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

O Elogio da Conscientização

-------------------------------------------------------------------------------
Frei Betto
Escritor, autor, em parceria com Paulo Freire e Ricardo Kotscho, de Essa escola chamada vida (Ática), entre outros livros

Conscientização deriva de consciência, ter ciência ou conhecimento de algo. O termo introduziu-se na linguagem dos setores progressistas da América Latina pelas obras do professor Paulo Freire (1921-1997), educador brasileiro que desenvolveu a pedagogia do oprimido — método de alfabetização que favorece o aprendizado da leitura e da escrita por meio da contextualização das palavras geradoras. Assim, pai está na raiz de país, pátria, abrindo à consciência do alfabetizando a percepção da conjuntura sociopolítica e econômica em que se situa.

Uma obra imprescindível, radiografia completa da vida e da pedagogia de Paulo, chega agora às livrarias: Paulo Freire – uma história de vida (São Paulo, Villa das Letras, 2006), assinada por Ana Maria Araújo Freire, educadora e viúva do renomado professor pernambucano. Com farta documentação, o livro esmiuça a trajetória de vida do biografado, a evolução e aplicação de seu método, os anos de exílio, bem como os efeitos de seu trabalho em vários países e as homenagens merecidas.

Impelido pelo método Paulo Freire, na década de 1970 intensificou-se, na América Latina, o trabalho de base com setores populares, assessorados por equipes de educação popular empenhadas em conscientizar camponeses, operários e pessoas de baixo poder aquisitivo. O verbo implicava tornar o educando consciente politicamente, ou seja, crítico ao sistema capitalista, às ditaduras, à opressão social e, ao mesmo tempo, adepto do projeto de construção de uma sociedade socialista.

Aos poucos, percebeu-se que não basta conscientizar, dotar o militante de noções políticas de matiz crítico. A cabeça pensa onde os pés pisam. Ainda que se adquira consciência dos problemas sociais e desafios políticos, o risco de idealismo é superado na medida em que o militante mantém vínculos orgânicos com os movimentos sociais. Sem prática social não há teoria que transforme a realidade, ensinou Paulo Freire.

Nas últimas décadas, o trabalho de base ampliou o significado de conscientização. O conhecimento não deriva apenas da razão ou dos conceitos que trazemos na cabeça. Resulta também de fatores não racionais ou transracionais, como a emoção, a intuição, o senso estético etc. Na Bíblia, conhecer é experimentar. Quando se diz que “Sara conheceu Abraão”, significa mais do que ser apresentado a uma outra pessoa. É fazer a experiência daquela pessoa, tocá-la física e subjetivamente, amá-la.

Com a introdução, no trabalho político, das relações de gênero e da preservação do meio ambiente, conscientizar ganhou significado mais amplo, articulando consciência e subjetividade, atuação efetiva e relações afetivas, prática social e solidariedade individual. Descarta-se, assim, a figura do militante maniqueísta, que advoga a transformação da sociedade sem se empenhar na mudança de si mesmo. Agora, conscientizado é o militante que conjuga, em sua atividade social e política, princípios éticos e compromisso com a causa libertadora dos pobres.

A cabeça do oprimido, reza um princípio marxista resgatado por Paulo Freire, tende a ser hotel de opressor. Ela hospeda idéias e atitudes inoculadas em nós por intermédio dos meios de comunicação, da cultura vigente, dos modismos. Pois o modo de pensar e agir de uma sociedade tende a refletir o modo de pensar e agir da classe que domina essa sociedade.

Conscientizar é propiciar aos oprimidos e aos militantes políticos um distanciamento crítico dessa ideologia dominante, de modo que assumam práticas inovadoras e renovadoras, rejeitando, na medida do possível, influências que possam induzi-los a — em nome de uma nova sociedade — adotar práticas típicas dos opressores, como é o caso do guerrilheiro que tortura o soldado inimigo para obter informações. Uma das causas da queda do socialismo no Leste Europeu foi o descrédito de dirigentes políticos que reproduziam em seu comportamento o que era próprio de tiranos e caudilhos que haviam derrubado e tanto criticavam.

Na América Latina, o avanço dos movimentos sociais e da mobilização por mudanças estruturantes depende, hoje, da intensificação do trabalho de base. Esse muitas vezes vê-se ameaçado pela síndrome do “eleitoreirismo” que contamina partidos de esquerda, mais interessados em se manter no poder do que em promover as transformações sociais, políticas e econômicas acentuadas em seus programas e reivindicadas por sua base social de apoio.

Dois critérios devem nortear, agora, essa conscientização: o vínculo pessoal e orgânico com as diferentes formas em que os pobres se mantêm organizados e o aperfeiçoamento da democracia pelo compromisso irredutível com a promoção da vida em toda a sua amplitude, desde a defesa do meio ambiente à luta por reformas estruturantes — como a agrária —, que reduzam a desigualdade social e assegurem a todos uma existência digna e feliz.

Fonte: Correio Braziliense, 09 de fevereiro de 2007